Por Cristina Ruffino. Observando e, muitas vezes, me angustiando com o que estamos assistindo no Brasil e no mundo em termos dos desarranjos climáticos, me deparei com leituras de Levinas, filósofo do período pós-Segunda Guerra. Derrida questionou as ideias de Levinas e as desconstruiu de uma forma que me encanta, mas descubro agora que as ideias de Levinas me fazem bem neste momento e me convidam a operar para além da angústia. Isso porque o autor coloca a responsabilidade no centro de sua ética, atribuindo-lhe um papel fundamental na relação com o Outro. Para ele, a responsabilidade é uma resposta direta e inescapável à presença do outro ser humano. A mera presença do outro nos interpela e exige uma resposta ética.
Desde o nascimento, o ser humano está imerso em um mundo de relações e, desde cedo, aprende a reconhecer a presença dos outros. Ainda que a responsabilidade, no sentido pleno, não seja algo consciente em bebês ou crianças pequenas, a capacidade de perceber o Outro e responder a essa alteridade começa a se desenvolver nas primeiras interações sociais, como com os pais, cuidadores e pessoas próximas. Outro dia, durante uma supervisão de Diálogos Abertos, ouvindo os colegas, essas ideias me convidaram à reflexão, naquele momento, endereçada ao contexto terapêutico: a responsabilidade do terapeuta frente ao que escuta de cada pessoa, de cada membro da família presente, daqueles que não estão presentes e dos co-terapeutas. Para esse filósofo, a responsabilidade é anterior à liberdade. A responsabilidade para com o Outro não é algo escolhido livremente; ao contrário, ela antecede qualquer escolha ou decisão. Estamos sempre já responsáveis antes mesmo de nos darmos conta, porque o Outro nos interpela simplesmente por existir. Eu costumava pensar que não temos o livre arbítrio de não nos comunicarmos com um outro humano presente: quer escolhamos falar ou calar, levantar ou abaixar o olhar, a comunicação foi feita. Ao ler Levinas, percebo que ali já operou a responsabilidade que, segundo ele, também não é uma escolha. Enquanto penso que escolho, a ação já foi feita e sou responsável por suas consequências. A responsabilidade que temos em relação ao Outro é, segundo ele, infinita e assimétrica. Isso significa que nunca podemos "pagar" ou "quitar" essa responsabilidade, ela está sempre além do que podemos fazer. Além disso, essa responsabilidade não é recíproca; não posso exigir que o Outro seja responsável por mim da mesma forma. Quando Levinas se refere a "face" do Outro, não se refere ao aspecto físico, mas ao que simboliza a vulnerabilidade e a alteridade do outro ser humano. A face do Outro, ao me confrontar, impõe-me a responsabilidade. No contexto terapêutico, a “face” do outro nos diz, sem palavras: "me cuide", e este é o chamamento ético que me proíbe de objetificar ou ignorar o Outro. Não é só o Outro presente que se impõe, aqueles que presentificamos no diálogo também se impõem a nós. Embora a relação primordial de responsabilidade seja para com o Outro singular presente, também reconhece a necessidade de justiça quando aparece um "terceiro", ou seja, quando existem múltiplos Outros. A justiça surge como a necessidade de equilibrar a responsabilidade que temos para com cada ser humano, sem que isso diminua a singularidade da relação ética com o Outro. Nas conversas terapêuticas em que um Outro nos fala de tantos Outros, como acolhemos este Outro presente sem ignorarmos que nossa responsabilidade se estende até tantos Outros que existe em cada história? Vejam que intrigante: para Levinas, a subjetividade – aquilo que penso que me constitui – também se constitui precisamente na responsabilidade pelo Outro. Eu sou, enquanto sujeito, na medida em que sou responsável. Assim, para ele, a ética não é um complemento à vida humana, mas sua própria fundação!! Depois vem Derida, desmonta tudo isso e remonta convidando a outras tantas reflexões… Enfim, o pensamento está sempre em transformação e isso me instiga a observar os efeitos que cada uma destas ideias, pensadas como metáforas, produzem em mim e que ações convidam.
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Cristina RuffinoSou Pedagoga (Unicamp), Mestre em Psicologia (Unicamp), doutora em Psicologia pela USP-RP. Arquivos
Dezembro 2024
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